O fechamento do site Livros de Humana, sem oferecer um substituto, aumenta a distância entre editoras e leitores
(*) Júlio Silveira |
Quem costumava acessar o site Livros de Humanas para baixar livros
(na grande maioria, ensaios acadêmicos), passou a encontrar lá somente a
mensagem: “estamos fora do ar porque recebemos notificação judicial da abdr.”
A Associação Brasileira de Direitos Reprográficos achou por bem exigir o
encerramento do site, cumprindo suas funções de “combate e punição à
pirataria editorial, que constitui crime contra os autores, tradutores,
revisores e outros profissionais […] do livro, além de ofender a noção
de cidadania”.
A medida, que se revestia de “defesa do direito do autor”, também
recebeu pesadas críticas de… autores, que se juntaram à multidão de
leitores, quase todos estudantes universitários, indignados com o que
chamaram de “barreira no acesso à informação”. No momento em que este
artigo é escrito, o site que reúne o protesto contra o fechamento passa de mil subscritores, quase todos “graduandos” e “mestrandos”.
O discurso dos autores a favor do site é que, ao fim e ao cabo, o
interesse do escritor é ser lido, e o livrosdehumanas.org cumpria de
modo mais eficiente a função de “publicar” do que as próprias editoras.
Também foi questionada a autoridade da ABDR para falar em nome dos
autores (entre seus 102 afiliados, apenas a UBE, representa a classe) e
sua ingerência sobre textos de domínio público e de ensaios
disponibilizados pelos próprios autores. Também argumentou-se que, se
não havia cobrança, não havia crime, já que a ABDR define que “a
reprodução ilegal de livros, com intuito de lucro direto ou indireto,
que constitui crime”. Com o site, as editoras talvez deixem de ganhar
dinheiro, mas estão certamente perdendo uma oportunidade.
Ronaldo Lemos, que é
membro do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e diretor do Creative
Commons no Brasil mostra que o caso do livrosdehumanas é apenas um
sintoma do momento de descompasso entre o que a tecnologia permite e o
que os membros da cadeia produtiva oferecem aos leitores.
“O conflito principal ocorre pela ausência de possibilidades de
acesso eletrônico legal. Esses mesmos livros que a ABDR tirou do ar, as
pessoas não têm como acessar. Um dos aspectos a ser discutidos é se a
existência desses serviços de venda digitalmente também não
desestimularia a necessidade de existência de sites como esses. Se o
preço fosse bom e fácil, o site não teria razão de ser.”
Essa é a questão. Ao dar as costas para os canais digitais, as
editoras estão indo contra sua função de “publicadoras”. O acesso livre e
gratuito ao livro sempre existiu, e atende pelo nome de “biblioteca”.
Foi encontrada uma solução econômica (entre autores, editores, governos e
universidades) que viabilizou o acesso gratuito (ou quase) ao leitor. É
preciso encontrar uma solução equivalente na era da publicação digital.
Essa solução tem que ser baseada na inversão da lógica atual do
livro. Não dá mais para esperar grandes margens de pequenas tiragens, é
preciso pensar em margens infinitesimais sobre tiragens infinitas.
Como bem diz Felipe Lindoso,
“A multiplicação das possibilidades de acesso deve contribuir para a
diminuição do preço para cada acesso individual. Os conteúdos podem e
devem ser disponibilizados a um preço condizente para que todos os
interessados possam acessá-los. Se isso não for feito dessa maneira, o
espaço para a pirataria, a reprodução ilegal, estará definitivamente
aberto. Não vai adiantar ter mecanismos de tranca (DRM) ou instituições
‘caça pirata’ que nem a ABDR. Essa é uma luta inútil, destinada à
derrota.”
A resposta “digital” da ABDR à anarquia seria a Pasta do Professor,
um portal no qual “as editoras disponibilizam os seus conteúdos de
forma fracionada e os professores criam pastas-do-professor virtuais”.
Assim, quem precisar ler o único capítulo que importa em A ética protestante e o espírito do capitalismo
não precisará comprar o livro todo (entre R$ 14,90 e R$ 48 na Livraria
Cultura), e pagará meros R$ 2,50. O preço é justo, mas o método é
obtuso: o leitor pode consultar a ficha do texto pela internet, mas,
para lê-lo, tem de se dirigir a uma copiadora cadastrada (no meu caso,
fica a meia hora, com bom trânsito, da minha casa). Se eu me dispuser a
ir lá buscar as 14 páginas, estarei, segundo o projeto, quitando o que
devo de direitos autorais — ainda que Max Weber tenha entrado em domínio
público em 1990. Posso até considerar que estou salvaguardando os
direitos do tradutor, se alguém me mostrar algum tradutor brasileiro que
ganha por exemplar vendido. Assim, a “pasta do professor” da ABDR é uma
solução que não soluciona, criando barreiras entre o leitor e o texto
ao tentar manter um status quo que não funciona. É preciso mudar tudo
para que tudo continue como está.
Mais próximas de uma “solução” são iniciativas como a empregada nas faculdades Estácio de Sá,
onde o aluno “ganha” um tablet com o conteúdo didático, previamente
licenciado pela instituição junto às editoras. Ou o projeto Nuvem de Livros,
onde, por uma módica tarifa semanal, têm-se acesso a um amplo acervo, e
que remunera as editoras na medida em que os livros de seu catálogo são
lidos. Ambos os projetos têm o que melhorar (no primeiro, os textos vêm
no inflexível formato PDF e, no segundo, os livros só podem ser
“folheados” on-line), mas já representam avanços na relação entre
editoras e leitores empregando os recursos digitais.
No exterior, tivemos há pouco um caso semelhante ao do livrodehumanas: a library.nu,
baseada na Alemanha e de alcance mundial. Neste site, estudantes também
compartilhavam textos acadêmicos, entre livros escaneados e e-books
“destravados”. Nada era vendido, mas o site aceitava doações — o que,
ironicamente, decretou seu fim, já que as autoridades conseguiram
rastrear a conta do PayPal e encerraram a festa.
Na opinião de Christopher Kelty,
que compara o fechamento da library.nu com um duelo entre leitores e
editores, as empresas “legacy” que perdem seu tempo tentando fechar
canais “alternativos” em vez de desenvolver novas maneiras de lidar com
os leitores estão alienadas da nova realidade: “a demanda global por
aprendizado e escolaridade não está sendo atendida pela indústria
editorial contemporânea. E não pode ser atendida, com os atuais modelos
de negócios e preços. Os usuários da library.nu — esses bárbaros aos
portões da indústria editorial e da universidade — são a legião.”
Agora, quem acessar o site library.nu achará um campo de busca do
Google Books e um anúncio da Amazon. A multidão de leitores solidários
foi substituída por duas megacorporações.
A indústria fonográfica saiu dos escombros para descobrir que a
força dominante não é mais a que produz (Sony, EMI, Warner etc), mas a
que distribui (Apple). O mesmo processo — de transferência de poder das
produtoras para a distribuidora — está ocorrendo na indústria editorial,
mas as editoras (algumas delas, pelo menos) estão mais atentas. Ao
mesmo tempo, está se desenhando uma força dominante no negócio de
“biblioteca virtual”, e talvez seja aquela que será dirigida por Robert
Darnton, aquele mesmo que defendeu “A causa dos livros”.
Para ele,
o futuro das bibliotecas com a digitalização é “o acesso aberto. Abrir
os tesouros intelectuais guardados nas nossas grandes bibliotecas de
pesquisa, como a de Harvard, para o mundo. Recebi a incumbência de criar
a Biblioteca Pública Digital da América, e há dois anos estamos
trabalhando para criar um novo tipo de biblioteca. Vamos pegar coleções
digitais de todas as grandes bibliotecas do país e usá-las como base de
uma grande coleção de livros que ficará disponível de graça para todo
mundo no mundo. Vamos estrear em abril do ano que vem. Será uma versão
preliminar, mas vai crescer até um dia, eu acho, superar a Biblioteca do
Congresso, a maior do mundo”.
As editoras podem se dedicar a criminalizar a leitura digital, e
isso vai ser tão eficiente quanto a criminalização da maconha: os
estudantes sempre dão um jeito de conseguir, e serão estimulados pelo
desafio da “proibição”. A demanda cria a oferta. Se essa oferta não vier
das editoras, empregando os recursos digitais de uma maneira
economicamente viável, virá de “alternativas” como o livrosdehumanas, ou
nos restringiremos a só ler o que grandes corporações estrangeiras,
como a Google, a Amazon ou a “Biblioteca da América” de Darnton
decidirem.
Julio Silveira é editor, formado em
Administração, com extensão em Economia da Cultura. Foi cofundador da
Casa da Palavra em 1996, gerente editorial da Agir/Nova Fronteira e
publisher da Thomas Nelson. Desde julho de 2011, vem se dedicando à Ímã
Editorial, explorando novos modelos de publicação propiciados pelo
digital. Tem textos publicados em, entre outros, 10 livros que abalaram meu mundo e Paixão pelos livros (Casa da Palavra), O futuro do livro (Olhares, 2007) e LivroLivre
(Ímã). Coordena o fórum Autor 2.0, onde escritores e editores
investigam as oportunidades e os riscos da publicação pós-digital.
A coluna LivroLivre aborda o impacto das novas tecnologias na indústria editorial e as novas formas de relacionamento entre seus componentes — autores, agentes, editores, livrarias e leitores. Ela é publicada quinzenalmente às quintas-feiras.
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