[*] Shamus Cooke, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Do Pátria Latina
Tarefa
essencial do jornalismo é responder à pergunta “por quê?” É dever de
todos os jornalistas explicar por que tal ou qual evento aconteceu, de
modo que os leitores e telespectadores tenham chance justa de
compreender o que leiam ou vejam.
Se
o porquê não é investigado e fica como que apagado, silenciado, deixado
de lado, os mais ensandecidos pressupostos e estereótipos saltam de
todos os cantos para ocupar todos os espaços, enunciados por
“especialistas” e políticos cujas ridículas “explicações” a
imprensa-empresa não questiona.
Dado que nenhum verdadeiro porquê do massacre na redação de Charlie Hebdo foi
investigado e oferecido à opinião pública pelos jornalistas da
imprensa-empresa, sobrou espaço para que um falso culpado aparecesse por
“geração espontânea”, o que levou à mais estúpida discussão nacional na
imprensa-empresa dos EUA, sobre se o Islã seria “inerentemente”
violento.
O
mero fato de um veículo de imprensa-empresa divulgar essa imbecilidade
já é prova de que estamos cercados pela mais asinina ignorância
“midiática” sobre o Oriente Médio e o Islã, ou, então, é prova do desejo
consciente de manipular as emoções das pessoas, o que explica
perfeitamente por que os “jornalistas” e “âncoras” só entrevistam alguns
“especialistas” capazes de enunciar tal estupidez, e sempre os mesmos.
Jornalistas
e especialistas “midiáticos” já deveriam saber que desde os anos 1980s o
fundamentalismo islamista desapareceu no Oriente Médio – e só sobrevive
na Arábia Saudita, ditadura que os EUA apoiam, e cuja família real
reinante só ainda reina porque conta com a proteção dos EUA. A religião
oficial na Arábia Saudita é uma versão fundamentalista única dentro do
Islã, a qual, com a própria família real, são as duas âncoras do poder
do governo saudita.
Antes
dos anos 1980s, a ideologia dominante no Oriente Médio foi o socialismo
pan-árabe – ideologia secular que via o fundamentalismo islamista como
econômica e socialmente atrasado e atrasista. Os fundamentalistas
islamistas começaram com ataques terroristas conta os governos
“socialistas pan-árabes” do Egito, da Síria, da Líbia, do Iraque e
outros que se alinharam com os socialistas pan-árabes em diferentes
momentos.
O
fundamentalismo islamista foi virtualmente extinto entre 1950-1980,
deixando a Arábia Saudita e depois o Qatar na função de último bastião e
base para cobertura e apoio de fundamentalistas exilados de países com
governos seculares.
Durante
a Guerra Fria, essa dinâmica foi acentuada, quando os EUA aliaram-se ao
fundamentalismo islamista – Arábia Saudita e Estados do Golfo –
enquanto a União Soviética aliou-se aos governos seculares de nações que
se identificavam como “socialistas”.
Quando
a revolução Saur, de 1978, no Afeganistão, resultou em mais um governo
de inspiração socialista, os EUA reagiram com uma união com a Arábia
Saudita para dar toneladas de armas, além de treinamento e malas de
dinheiro aos primeiros terroristas do movimento então ainda nascente.
Essa ação ajudou a transformar aqueles primeiros fundamentalistas ainda
localizados, numa força social regional, que em pouco tempo tornou-se os
Talibã e a al-Qaeda.
Os
fundamentalistas afegãos mantidos pelos EUA foram a origem do moderno
movimento de fundamentalismo islamista. O movimento atraiu e ajudou a
organizar fundamentalistas por toda a região, e as ditaduras do Golfo,
aliadas dos EUA, usaram a religião de Estado para autopromover as
próprias ditaduras. Combatentes que viajavam para lutar no Afeganistão
retornavam aos países natais com treinamento e experiência de guerra e status de heróis, o que inspirava outros a unir-se ao mesmo movimento.
Depois,
os EUA ajudaram os fundamentalistas ao invadir o Afeganistão e o
Iraque, ao destruir a Líbia e ao fazer a mais estúpida e fanatizada
guerra à distância contra o governo da Síria. Os fundamentalistas
serviram-se dessas invasões e da destruição subsequente de nações, para
mostrar que o ocidente estava em guerra contra o Islã.
O
fundamentalismo islamista cresceu sem parar durante aquele período, até
que deu mais um gigantesco salto adiante, que começou com a guerra que
os EUA patrocinam contra o governo da Síria, patrocínio que criou um
fundamentalismo islamista literalmente inflado “de esteróides”.
Mais
uma vez, o governo dos EUA alinhou-se ao lado dos fundamentalistas
islamistas, que foram os principais grupos que lutavam para derrubar o
governo da Síria desde 2012. Para arregimentar os milhares de
combatentes estrangeiros necessários para aquela guerra, Arábia Saudita,
Qatar e outros estados do Golfo passaram a promover o fundamentalismo
com sua própria imprensa-empresa, suas figuras religiosos e seus
doadores muito ricos, enriquecidos sempre mais pelo petróleo.
Enquanto
os grupos fundamentalistas prosperavam na Síria, a imprensa-empresa e
os “especialistas” norte-americanos mantiveram-se em total silêncio,
mesmo quando já se sabia que grupos como al-Qaeda e ISIS estavam
crescendo exponencialmente graças às quantidades estonteantes de
dinheiro e armas que os estados do Golfo lhes forneciam.
O governo Obama, na prática, fez como se não soubesse de nada disso. Até que o ISIS, que invadiu o Iraque, chegou em 2014 ao Curdistão que os EUA protegiam.
Em
versão resumida, as guerras dos EUA no Afeganistão, Iraque, Líbia e
Síria destruíram quatro civilizações em nações de maioria muçulmana.
Gente orgulhosa de si e da própria, história nacional foi destruída, aos
milhões, pela guerra – mortos, feridos, mutilados, convertidos em
refugiados ou desgraçados pela miséria, pela falta de emprego e pela
fome. Essas são as condições ideais para que floresça o fundamentalismo
islamista de estilo saudita, quando até as promessas mais ocas, de
qualquer dignidade e qualquer tipo de poder, encontram eco na alma de
pessoas às quais tudo foi roubado.
Outro grave fracasso do jornalismo e dos jornalistas da imprensa-empresa norte-americana na cobertura dos crimes contra Charlie Hebdo é
o modo como se discutiu o que seja “sátira” – e as ações do semanário
foram elogiadas como se ali estivesse manifestação do mais alto
princípio da liberdade de manifestação do pensamento e de liberdade de
imprensa.
É
importante saber o que é sátira política, e o que absolutamente não é.
Embora a definição não seja estrita, entende-se que a sátira política
seja dirigida contra governos ou indivíduos poderosos. É forma muito
potente de crítica e análise política que merece ser absolutamente
assegurada e protegida pela liberdade de manifestação do pensamento.
Charlie Hebdo e reações da imprensa-empresa |
Contudo,
quando a potência da sátira política passa a ser dirigida contra
minorias oprimidas – e os muçulmanos na França são uma minoria oprimida –
já não se pode falar de sátira e já se tem de considerá-la como
ferramenta (mais uma!) de opressão, de criminalização de uma religião, e
de racismo.
Discriminação contra os muçulmanos na França
A discriminação que os muçulmanos franceses enfrentam aumentou dramaticamente ao longo dos anos, com os muçulmanos tomados como alvo de discriminação na política e nos veículos da grande imprensa-empresa – sendo que a mais repugnante manifestação dessa discriminação foi, em 2010, na França, a proibição de “cobrir a cabeça”, dirigida contra o véu que as mulheres muçulmanas usam.
A
discriminação aumentou ao mesmo ritmo em que a classe trabalhadora
francesa passou a sofrer o aguilhão da “austeridade”. Essa dinâmica
acelerou-se a partir da recessão mundial de 2008; e, consequentemente,
políticos populistas servem-se, como bodes expiatórios, cada vez mais
frequentemente, de muçulmanos, africanos e qualquer um que seja visto
como imigrante.
Nesse
contexto, as charges que ofendem os muçulmanos quando ridicularizam seu
profeta Maomé – ofensa tipificada e considerada muito grave dentro do
Islã – são muito insultantes e, sim, têm de ser vistas como incitamento
ao ódio racista na França, onde árabes e norte-africanos são
frequentemente alvos de ataques da extrema direita contra imigrantes.
É sinal de o quão profundamente a França decaiu em termos políticos, que tanta gente se apresente em solidariedade ao jornal Charlie Hebdo,
que produziu e publicou algumas das charges mais racistas e
incendiárias de incitamento ao ódio racista contra muçulmanos, árabes e
pessoas originais do norte da África, que tanto contribuíram para
alimentar a cultura de ódio que resultou em ataques físicos contra
muçulmanos depois do massacre na redação de Charlie Hebdo. É exatamente a mesma dinâmica política racista que levou Hitler a usar os judeus como seus bodes expiatórios.
Tudo
indica que o racismo na França já tenha superado até o racismo nos EUA.
Afinal, é inimaginável que, se a Ku Klux Klan fosse atacada nos EUA por
seu discurso de ódio contra os mexicanos, os “inteligentíssimos”
norte-americanos pôr-se-iam a distribuir milhões de selfies em que declarariam “Sou KKK”.
Sabe-se que Charlie Hebdo não
é jornal da extrema direita. Mas os consistentes ataques contra
muçulmanos e africanos mostram o quanto o semanário foi incorporado
pelo establishment político
francês, que agora cada vez mais confia no expediente de servir-se de
minorias como seus bodes expiatórios para permanecer no poder, porque
assim impede que as grandes empresas-imprensa e outras e os mais ricos
sejam acusados de ter convertido em inferno a vida da classe
trabalhadora na França.
Melhor
culpar os sindicatos e quaisquer minorias pelo estado esfrangalhado em
que está a economia francesa, comandada, afinal, por empresas e
empresários e financistas pressupostos competentíssimos.
O
único modo de combater as táticas de os ricos usarem os mais pobres
como bodes expiatórios políticos é nunca perder de vista quais são as
forças sociais responsáveis pela crise econômica e obrigá-las a pagar
pelas soluções pelas quais os ricos estão exigindo que a classe
trabalhadora pague com salários arrochados e “austeridade”.
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