Por André Dick
No volume Poesia da recusa, Augusto de Campos relembra as palavras de Valéry sobre o trabalho de Mallarmé: “O trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por recusas. Pode-se dizer que ele é medido pelo número de recusas. [...] O rigor das recusas, a quantidade das soluções que são rejeitadas, as possibilidades que o escritor se proíbe, manifestam a natureza dos escrúpulos, o grau de consciência, a quantidade do orgulho e, também, os pudores e os diversos temores que se pode sentir com relação aos julgamentos futuros do público. É nesse ponto que a literatura atinge o domínio da ética”.
No caso de alguns poetas russos, trata-se de uma recusa não só a posições políticas (ou seja, a fuga a qualquer direita ou a qualquer esquerda que se proponha, sobretudo dominada por posições autoritárias ou pertencentes ao “diálogo com o povo”), mas à vida meramente sistematizada. Não por acaso, Óssip Mandelstam – um dos poetas mais contundentes de Poesia da recusa – acabou nos campos de concentração de Stalin, postando-se contra a vida burocrática do intelectual que trabalha para as idéias do governo, em busca de privilégios e aceitação popular. Esta recusa é representada, em outros casos (como os de Iessiênin, Maiakovski e Marina Tzvietáieva), pelo suicídio, obviamente uma representação do desespero existencial de seus poetas e não uma sublimação literária, para se alcançar a eternidade ou tornar os escritos de quem se matou em algo de mais valor, ou entendê-lo como obrigação do sujeito infeliz, ou do poeta que deseja fugir ao sistema. A recusa não implica, também, escolher um caminho de pureza, de distanciamento do mundo, mas sim o de privilegiar o diálogo com a tradição, com o mundo – mas de forma não ideológica, comprometida. Envolve um certo desalento da vida, como em “Cassino”, de Óssip Mandelstam: “Não gosto de prazer premeditado. / O mundo, às vezes, é um borrão escuro. / Eu, meio bêbado, estou condenado / A ver as cores de um viver obscuro”. Ou na terceira parte” do poema “Veneza”, de Aleksandr Blok: “O barulho da vida já não dura. / A maré de inquietudes se quebranta. / E no veludo negro o vento canto / Minha vida futura. / / Talvez despertarei noutro lugar, / Quem sabe nesta terra entristecida, / E algumas vezes hei de suspirar / Pensando em sonho nesta vida?”. Mesmo quando a poesia se destina a criticar a própria poesia, isso é uma crítica da reflexão, como se pode ver em versos de Mandelstam (foto abaixo), no excepcional “Silentium”:
Ainda não é nascida,
É só canção e poesia,
E está em plena harmonia
Com tudo o que é vida.
O seio da onda arfa em paz,
Mas como um louco brilha o dia
E a espuma pálido-lilás
Jaz no azul-névoa da bacia.
Que em meus lábios pairasse
A quietude original
Como uma nota de cristal
Pura desde que nasce!
Volve à poesia e a canção,
Sê só espuma, Afrodite,
Coração, desdenha o coração
Que com a vida coabite
Veja-se, igualmente, o melancólico “Odeio o brilho frio” (com sua quadra final de alta qualidade: “Quando a hora já se for, / Talvez eu volte a voar. / Lá, me negam o amor. / Aqui, não ouso amar”) ou “Abro as veias” (”Abro as veias: irreprimível, / Irrecuperável, a vida vaza. / Ponham embaixo vasos e vasilhas! / Todas as vasilhas serão rasas, / Parcos os vasos. / / Pelas bordas – à margem – / para os veios negros da terra vazia, / Nutriz da vida, irrecuperável, / Irreprimível, vaza a poesia”). Mandelstam, como lembra Augusto de Campos, foi preso em 1934, “por ter escrito versos satíricos contra Stalin”, sendo “sentenciado a três anos de exílio na remota Cherdyn”. Acabou tentando o suicídio. Detido novamente em 1938, condenado a cinco anos de trabalhos forçados, acabou morrendo num “campo de passagem”, “enquanto aguardava a deportação para um dos campos de reeducação da Sibéria”. Fizeram o possível para que ele não fosse contemporâneo de seu país – quando a liderança de seu país, naquele momento, não era, sob certo ponto de vista, contemporânea da ética.
Augusto considera que a poesia traz um instinto revolucionário, e pode-se dizer que, acrescentando ao que a poesia concreta, em sua fase do salto participante, dizia “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, a ideia hoje é que “Sem forma e sem vida revolucionárias não há arte revolucionária”. Revolucionário, aqui, sem a pretensão de transformar o mundo pregando uma ideologia, mas sim não aceitar o que o mundo impõe nem vender ideias por mordomias e privilégios, como escreveu, certa vez, Paulo Leminski. Num plano sincrônico, Mallarmé está ligado aos poetas russos de Poesia da recusa, com suas obras consideradas distantes do povo, como a de Anna Akhmátova, que, junto com Pasternak, foi deixada à margem pelo stalinismo. Akhmátova é uma das poetas mais modernas que a Rússia já teve e, além de haver traduções de poemas seus em Poesia da recusa, ganhou um volume da Coleção L&PM Pocket, com traduções de Lauro Machado Coelho, o mesmo que escreveu sua biografia Anna, a voz da Rússia – Vida e obra de Anna Akhmátova e é responsável pelo volume Poesia soviética, ambos editados pela Argol.
Ela está entre as poetas que permaneceram na Rússia mesmo com a intervenção stalinista. O comissário de cultura de Stalin, Zhdânov, a condenou, como lembra Augusto de Campos, por “praticar uma poesia aristocrática, antipopular”, ou seja, “distante do povo” – segundo suas palavras. Lembra também Augusto: “Viveu em relativo ostracismo, às vezes sob vigilância policial, com seus livros por longo tempo proibidos de serem editados. Se não chegou a ser encarcerada pela polícia soviética, teve um filho preso, o que amargurou a sua vida por muitos anos”. Para Augusto, ela “desenvolveu uma poesia de cunho emocional e sensitivo, porém marcada pela nobreza e sobriedade de dicção e por uma insubornável fidelidade à própria experiência”. Sua poesia “tem nuances e peculiaridades da sensibilidade feminina, com parcimônia vocabular e crescente distanciamento crítico”. Daí Augusto escrever, com eficiência, avaliando o poema “Contra a fama”, de Pasternak, que foi perseguido porque recebeu o Nobel de Literatura por Dr. Jivago: “A voz desse poema soa hoje mais solitária do que nunca, mas, mesmo clamantis in deserto, merece ser difundida. É a resistência ética, a alma rebelde da poesia, contra-estilo do fracasso, diante das imposições e imposturas do poder e da glória”.
O mesmo se diz de Marina Tzvietáieva, que acabou tendo um fim trágico (suicidou-se), depois de o marido ter sido fuzilado e a filha colocada num campo de concentração, logo após a Rússia ser invadida pelos nazistas. Como lembra Augusto, ela foi censurada, antes, “pela intolerância dos ‘comissários do povo’ soviéticos, rejeitada pelos emigrados anticomunistas, não parecia haver lugar para ela em parte alguma. Seria tão diferente dos seus coirmãos suicidadas, na sua rebeldia insubornável e na sua inadequação ao sistema dominante?”. Veja-se, por exemplo, um fragmento do texto sobre a poeta russa Marina Tzvietáieva. Augusto destaca a “riqueza de invenção rítmica, uso substantivo, celular da palavra, realçando os choques paronomásticos intervocabulares e as arestas dos versos retalhados de enjambements, sintaxe elíptica, quase telegráfica” da poeta russa. Augusto traduz com sua dicção singular, procurando esse tom telegráfico, um poema como “Louvor de Afrodite”, em que há os belos versos “Mas eu, aqui na areia gélida, / Dia após dia me olho sem saída, / Como serpente que olha a velha pele, da / Juventude desvestida”. Ou a quadra de “A carta”: “Felicidade? E a idade? / A flor – floriu. / Quadrado do pátio: / Bocas de fuzil”. Com os versos “Jardim: sem ir. / Jardim: sem cor. / Jardim: sem rir. / Jardim: sem flor. / / Dá-me um jardim: Sem um olor, / Sem um amor, / Sem alma, enfim”, o poema “Jardim” também é vertido com propriedade. Todos esses elementos, na poesia de Marina, são animados por “um avassalante pathos existencial”. Esse pathos – também investigado por Décio Pignatari, no seu livro de traduções dedicados à poeta russa, lançado pela Travessa dos Editores, e por Aurora Fornoni Bernardini em Indícios flutuantes, com versos, e Vivendo sob o fogo, com trechos de diários, memórias e correspondências da poeta russa – fica claro num poema como “Maiakovski”, mas o amor é o que traz mais um sentimento de recusa, em “Diálogo de Hamlet com a consciência”: “Está lá no fundo da lama, / Limo!… Uma última corola / Entre as toras aflora… / – “Mas eu a amava / Como quarenta mil….” / – Menos / Do que um só amante. / / Lá, no fundo, na lama. / – Mas eu a amava – / (dúvida) / como quem ama??”. Leia-se essa intradução, intitulada “versos à Tchecoslováquia”, de Marina Tzvietáieva (foto abaixo), tratando, com repulsa, da invasão nazista na Rússia:
Lágrimas de ira e amor!
Olhos molhados, quanto!
Espanha em sangue!
Tchecoslováquia em pranto!
Montanha negra –
Toda a luz amputada!
É tempo – tempo – tempo
De devolver a Deus a entrada!
Eu me recuso a ser.
No asilo da não-gente
Me recuso a viver.
Com o lobo regente
Me recuso a uivar.
Com os tubarões do prado
Me recuso a nadar,
Dorso dobrado.
Ouvidos? Eu desprezo.
Meus olhos não têm uso.
Ao teu mundo sem senso
A resposta é – recuso
Iessiênin, por sua vez, renegou os privilégios que os oficiais stalinistas propunham aos artistas, num período em que muitos poetas serviam, como voz, ao partido do líder russo. Neste caso, o interessante é que a revolução, aqui, é a recusa à revolução retórica e mesmo à revolução destacada pelo movimento concreto, em que o poeta produziria para as massas. Os poetas acabam por evitar esse “mundo” no qual veem suas ideias serem contrariadas pelos fatos que encaminham ao encobrimento de qualquer verdade. O poeta é alguém que faz da linguagem o meio de justamente agir sobre a atemporalidade. Não que o que ele escreva não tenha nada a ver com seu tempo: tem sempre relação – no entanto, é uma relação indireta, subjetiva, muitas vezes inconsciente. Ele quebra a história – como esses poetas russos quebraram – porque entende que não pode ser contemporâneo à medida que antecipa a ética que, no momento em que escreve, muitas vezes é encoberta pelo discurso distorcido, capaz de impedi-lo de, visivelmente, vir à cena. Sua contemporaneidade está justamente no fato de não se deixar ser dominado por seu tempo: que escreve para algo além, que seu papel é justamente reinterpretar os dados prévios à sua existência, entender que as trevas o cercam (instituindo sua retórica inadequada), mas que seu discurso não é finito como tais trevas. Parece estar justamente no fato de perceber que é sempre atual, mesmo que a história que aconteça ao seu redor não o seja – isto é, ainda está baseada em ideais que se adequam apenas aos interesses de um discurso vazio.
Em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, em que se dedica a estudar o caso de Constantin Guys, Baudelaire já escrevia que a modernidade é “o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte, cuja metade restante é eterna e imutável”. A proposição do poeta francês é pertinente para retomar o próprio conceito original de modernidade. Como afirma Jürgen Habermas, a proposição de Baudelaire institui uma “intersecção do eixo entre atualidade e eternidade, ou seja, a modernidade representa uma “atualidade que se consome a si mesma”. Nesse sentido, o presente não pode ser mais visto como a consciência de algo simplesmente oposto à “época rejeitada e ultrapassada, a uma figura de passado”, e sim apresentar uma atualidade capaz de ser o ponto de ligação entre o tempo e a eternidade. Baudelaire percebe, assim, que a modernidade não se distancia do seu “caráter precário”, mas sim de sua “trivialidade”, desejando que o “momento transitório seja reconhecido como o passado autêntico de um presente futuro”. A modernidade torna-se o que um dia será clássico, sendo este, doravante, o “‘clarão’ da aurora de um novo mundo, que decerto não terá permanência, mas, ao contrário, sua primeira entrada em cena selará também a sua destruição”. Dá-se, então, a ligação entre modernidade e a moda, pois o “novo” em Baudelaire não presta nenhuma “contribuição ao progresso” (que ele ligará ao conceito de decadência). Como lembra Benjamin, o poeta francês “faz aparecer o novo no sempre igual e o sempre igual no novo” – ou seja, ele não tinha objetivo de fazer nenhuma revolução e entende que há moda, mas também há novos ciclos futuros. Como dizia Paul Celan, “há canções a cantar além dos homens”. Os poetas russos aqui lembrados souberam, como Celan, “entoar essas canções”. Eles visualizam o outro lado da modernidade, que não é o efêmero: eles realmente incorporam a história – ou a revolucionam –, porque sabem estar excluídos dela e só por meio disso tem condições de realmente defini-la. Trata-se de uma tentativa de revelar o único elemento inédito nos discursos desgastados: de que a história não pode ser tratada pelo viés messiânico quando este é guiado pelo discurso avesso de sua realização. E de que somente uma “voz” à frente de todos não significa a superioridade dessa figura, sobretudo quando ela não tem os elementos de um verdadeiro Messias – e sim a mediocridade dos que acabam por erguê-la. Tentar desviar desse caminho depende da consciência de que não há quebra na história que não seja sugerida pelos próprios elementos que ela já traz, e que pretensamente renová-la – sobretudo com as mesmas figuras, que já cometeram sérios erros anteriormente e continuam apegadas ao poder, protegidas por um líder equivocado – é um despiste para esquecer de que muitas vezes ela não deu certo e partiu para um tempo de trevas. Esses poetas russos souberam, por um instante, acender uma fagulha, mínima que seja, tentando iluminar o que deu errado para que não aconteça novamente. Alguns ainda tentam apagá-la, e os poetas continuam fora da história “oficial”.
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