Por Antonio Martins - Do Trezentos - 25.06.09
Para Marcelo Branco (foto), coordenador-geral do FISL-10, uma grande disputa pelo sentido do século 21 começou há pouco, com as tentativas de restringir e vigiar o uso da rede. Nesta nova batalha, as grandes empresas estão divididas; e os partidos e sindicatos, sem rumo
Corpo esguio, pele morena, cabelos longos, cacheados e grisalhos, o gaúcho Marcelo Branco é talvez a figura mais procurada para entrevistas nos corredores da PUC-RS, onde se desenvolve o Fórum Internacional do Software Livre (FISL10). Há alguns meses, este personagem carismático, que não tira do pescoço a kaffieh palestina, assumiu a coordenação geral da Associação do Software Livre (ASL), a ONG que organiza o evento. Mais um ponto na trilha de quem foi sindicalista e líder da luta contra a privatização da Telebrás (no início dos anos 1990); militou no PT gaúcho, integrou o governo do Estado e ajudou a conceber (há dez anos) o I FISL; mudou-se para a Espanha, colaborou com Manuel Castells e coordenou diversos projetos regionais de implantação de programas de computador abertos.
Em 24 de junho, dia da abertura do Fórum, Marcelo reservou quase uma hora para uma conversa pouco convencional com a equipe da Agência FISL. Não tratou dos números do evento, mas do futuro do planeta. Expôs sua visão particular sobre a emergência das redes e da internet; a importância da batalha por mantê-la livre, neutra e sem vigilância; o desconforto que esta disputa entre os grupos sociais e forças políticas que dominaram o cenário no século passado. O áudio da entrevista (55m, em cinco partes), está aqui. Veja abaixo os pontos principais:
Os sentidos da internet
A possibilidade de desintermediar as relações sociais pode abrir uma nova etapa civilizatória – mas seu sentido ainda é incerto. Os espaços para a articulação direta entre os seres humanos, sem as condições impostas pelo capital, estão se multiplicando. Há muito tempo falávamos em associações produtivas diretas entre trabalhadores, mas não havia meios tecnológicos para fazê-lo com rapidez e em grande escala. Estes meios são oferecidos agora pela internet: o site da Rede Brasileira de Economia Solidária, por exemplo, permite localizar, comprar ou trocar, após alguns cliques, centenas de itens produzidos por cooperativas.
A desnecessidade do capital aparece de forma ainda mais nítida em setores como a antiga indústria cultural, ou do copyright. Há alguns anos, uma banda de músicos que quisesse tornar-se conhecida precisava dos serviços de uma gravadora para ter acesso a estúdios, prensar discos, levá-los às lojas, fazer publicidade. Hoje, todos estes papéis podem (e são, em muitos casos) realizados pelos próprios músicos – inclusive porque a digitalização afundou os preços dos equipamentos.
Porém, sozinhas, estas condições não asseguram o surgimento de uma sociedade melhor. A condição democrática não é algo explícito, ou necessário, na rede. A internet pode ser usada igualmente para controle social – assim como, no século passado, algumas experiências políticas libertadoras degeneraram em Estados policiais. É por isso que na disputa pelos rumos da rede tem enorme importância na própria definição do sentido do século 21. Não por acaso, o tema central do FISL deste ano é “Liberdade. Contra o controle e a vigilância na internet”
A disputa pelo controle da rede
Os últimos anos foram marcados por enormes avanços democratizadores. Desde que a internet passou da fase pontocom para a 2.0, tem sucesso as iniciativas que promovem o compartilhamento, a desmercantilização, a colaboração. Estamos vivendo o início da época das redes sociais, que multiplica a potência e autonomia dos grupos articulados e capazes de gerar inteligência coletiva.
Há cerca de um ano, no entanto, começou um contra-ataque. Alguns de seus símbolos são a lei de restrição à internet na França (aprovada por proposta e pressão do governo Sarkozy mas derrubada em seguida pelo tribunal constitucional), o processo contra o grupo sueco Pirate Bay, cujo site facilita a troca de arquivos digitalizados e, no Brasil, o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo.
É um ataque violento e combinado. Nele, estão envolvidos três agentes fundamentais: a) empresas dominantes em setores onde o capital está se tornando rapidamente obsoleto (como a indústria fonográfica e cinematográfica). Seu poder econômico está minguando, mas conservam enorme capacidade de articulação política e em especial de lobbyng. b) os segmentos dos Estados mais ligados à repressão, controle social e vigilância. São eles que procuram associar troca de arquivos digitais com “terrorismo”. Fato emblemático: a Convenção de Budapeste, onde se armou a ofensiva desencadeada agora contra a liberdade na rede, foi firmada dois meses após os atentados de 11 de setembro de 2001, num momento político marcado pelo medo. O Brasil não está entre os cerca de 40 países signatários; c) a velha mídia, que ideologicamente não consegue conceber relações sociais pós-capitalistas, e cujos interesses oligopolítisticos são diretamente afetados pela emergência da blogosfera.
Direita e esquerda desconcertadas, diante da desintermediação
Marcelo orgulha-se de seu passado como sindicalista e militante do PT. “Não espere nada de quem se diz esquerdista arrependido”, diz ele. Considera que, no século passado, os caminhos da transformação social estavam entrelaçados com os da representação política e sindical.
Contudo, destaca uma transição delicada. As novas tecnologias criam condições para desintermediar também as relações políticas. Marcelo não quer fazer projeções para o futuro; mas observa que, hoje, defender uma causa qualquer é uma opção que dispensa adesão a um partido político. Novas redes de mobilização social, em favor de objetivos específicos, vão se multiplicando a cada instante. Ao contrário do que sustenta a crítica conservadora, elas não são apenas virtuais. Produzem efeitos concretos, dos quais há exemplos abundantes: a campanha contra a lei Azeredo (agora, no Brasil); a derrubada do governo Aznar (em 2004, na Espanha); a denúncia da invasão do Líbano por Israel (em 2006); a avalanche em favor de Barack Obama; a persistente mobilização dos iranianos contra o fundamentalismo do governo Ahminejad.
No universo político e sindical da esquerda, muitos resistem a compreender esta transformação. Insistem em intermediar o que se pode fazer autonomamente. Esta resistência conservadora está na origem das críticas endereçadas a novidades políticas como o Fórum Social Mundial – taxado de “anárquico”, “sem rumo” ou “diverso demais” por setores da esquerda.
O curioso é que as redes provocam desorientação semelhante também no terreno do capital. Grandes empresas (como a Google) nascem e se agigantam num piscar de olhos, porque são sensíveis ao desejo de comunicação e des-hierarquização presente na sociedade. Outras vão se adaptando à mudança (Oracle, Sun, UOL e Itautec estão presentes e atuantes no FISL10). Mas setores como a indústria do copyleft atacam com virulência a nova lógica.
Democratização das Comunicações
Marcelo está particularmente preocupado com a luta pela democratização da mídia. Teme que oportunidades se percam. Refere-se, no Brasil, à Conferência Nacional de Comunicação (1 a 4 de dezembro).
Ele pensa que duas posturas são ineficazes ou insuficientes. A primeira é denunciar o conteúdo da mídia de massas (como se fosse possível esperar dela profundidade ou posturas democráticas). A segunda é supervalorizar as concessões públicas do espaço radioelétrico, hoje dominadas por alguns grandes grupos, em associação com famílias oligárquicas ou caciques políticos regionais. Estes pontos, de enorme importância no século passado, estão perdendo sentido aceleradamente. Se até os grupos de mídia mais contemporâneos (e em especial o público…) estão migrando para a internet, que efeito terá, em dez ou quinze anos, redistribuir os canais de rádio ou as estações de TV?
Marcelo vislumbra uma agenda alternativa. Nela, as batalhas que marcaram a luta pela democracia midiática nas décadas anteriores não desaparecem (“assim como não podemos nos esquecer das propostas anti-feudais, como a reforma agrária”). Mas o centro da disputa migra para a difusão da cultura digital. Livre circulação de conhecimento e bens imateriais na rede. Acesso público e gratuito à internet, em banda larga. Formação conceitual, técnica e tecnológica para uso das novas mídias. Políticas públicas novas, para realidades, demandas e desejos inéditos.
Importante em todo o mundo, incorporar esta pauta seria ainda mais decisivo no Brasil, julga o coordenador-geral da ASL. “Fomos colonizados e subalternos durante todo o período industrial. Mas alguns de nossos traços culturais – entre eles a criatividade, a diversidade e capacidade de comunicação – podem fazer de nós um ator destacado nas lutas pela democracia e igualdade no século 21”, arremata ele.
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