5 de jun. de 2009

Khlébnikov: inventor de palavras

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Entre eles, está o nome de Vielimir Khlébnikov, o poeta do “travesseiro”, cuja obra está inserida, com certeza, na lista das maiores do século XIX. Pouco conhecida, em relação a um poeta como Maiakóvski – visto como o grande nome, o mais representativo, dessa poesia sobre o operariado –, a poesia de Khlébnikov se caracteriza pela universalidade e pela experimentação de linguagem, tão bem sintetizadas por Augusto de Campos no ensaio “O Colombo dos novos continentes poéticos”, de À margem da margem.
Nascido na aldeia de Tundúvoto, do governo de Astrakan, na Rússia, em 1895, Khlébnikov faz parte de um grupo seleto de grandes poetas modernos da Rússia, entre os quais estão Maikóvski, Boris Pasternak, Marina Tzvietaéiva e Anna Akhmátova, entre outros. Era filho de pai ornitologista de uma mãe que apreciava música, história e literatura. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, estudou Física, Matemática e Ciências Naturais. Também aprendeu sânscrito na Faculdade de Línguas Orientais e se transferiu para a área de Letras, a fim de estudar Eslavística.

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Para o poeta Assiéiev, ele “era semelhante em espécie a um passarinho pensativo com as longas mãos e com o hábito de descansar sobre um pé, com seu olho atento, com suas migrações imprevistas e as precipitações do espaço e as fugas para o futuro”. Mais preocupado em imigrar para diversos lugares, obedecendo às mudanças de estação, o poeta, não demonstrava interesse em publicar seus poemas, a fim de compor uma obra. Ele tinha algo mais importante para fazer: produzir poesia. Era preciso, no entanto, que seus amigos escolhessem, dentre as pilhas de rascunhos relegados ao provável esquecimento, aqueles poemas que seriam publicados.
O poeta Vladimir Maiakóvski dizia se espantar com o trabalho de Khlébnikov. Segundo ele, o quarto do poeta “era vazio de mobília e vivia abarrotado de cadernos, frases soltas e pedacinhos de papel, cobertos de sua letra miudinha”. Se alguém não extraía de suas pilhas de poemas algum para imprimir, o poeta russo, antes de partir em viagem, enchia uma fronha com os manuscritos. Nas viagens, dormia sobre esse travesseiro - e acabava por perdê-lo.
É falado que a criação do futurismo se deve a Khlébnikov. No entanto, o poeta russo nunca tentou publicar seus trabalhos, muito menos organizar movimentos. Claro que por meio da linguagem “zaum” (a linguagem transmental), em que vocábulos eram criados com o propósito de alcançar novas sonorizações – encontradas nos poemas ao final deste artigo – e que ajudou a moldar, Khlébnikov ficou mais próximo do ideal futurista, mas é impossível afirmar que o poeta pretendia pertencer a uma corrente poética de vanguarda ou coisa similar.

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Seu objetivo era realizar poesia, seja em poemas de risco, com a linguagem “zaum”, seja em poemas de tradição simbolista. Como escreve Boris Schnaiderman, no artigo “O mundo precisa de Khlébnikov”, “sua linguagem é a mais despojada de literatice, a mais arrojada, a mais próxima do genuíno espírito da língua”. Desse modo, para Schnaiderman, ele é um precursor: “Antes que Joyce amadurecesse a sua extraordinária revolução na linguagem literária, Khlébnikov já publicava poemas em que são evidentes os elementos pré-joyceanos. Antes que dadaístas e surrealistas expusessem preto no branco a sua subversão dos valores consagrados em arte e literatura, Khlébnikov já fazia pré-dadaísmo e pré-surrealismo”.
Os últimos anos do poeta, no entanto, foram conturbados. Aventureiro, Khlébnikov prestou serviço militar na infantaria russa na guerra de 14. Durante a Guerra Civil, foi preso como espião, indo parar num hospital psiquiátrico. Entre 1918 e 1920, viveu num quarto frio e sem luz, faltando a ele roupa e comida. Adoeceu de tifo por duas vezes. Em 1920, trabalhou na Agência Telegráfica de Cáucaso, para, no ano seguinte, partir em direção à Pérsia com o Exército Vermelho. Na volta à Rússia, arranjou trabalho como guarda-noturno na Agência Rosta, pois tinha que se alimentar, e em 1921 partiu para Moscou, num vagão de epiléticos. Khlébnikov acabou por morrer na aldeia de Santalovo, governo de Nóvgorod, em 1922, ano em que Mário e Oswald de Andrade estavam à frente da Semana de Arte Moderna, em São Paulo.

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Irritado com as publicações que reconheciam a obra de Khlébnikov após sua morte – em vida o poeta foi perseguido pelo regime stalinista, que proíbe qualquer discordância ou ideais que não estejam em seus planos –, Maikóvski pediu: “Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!”. Khlébnikov que, dentre seus muitos sonhos e profecias, pretendia criar uma sociedade de presidentes do Globo Terrestre (com poetas, filósofos, sábios, revolucionários) que governaria o mundo, talvez não se interessasse em ser lembrado, talvez porque soubesse, antes de mais nada, que sua poesia era constituída de inteligência e visão literária, e, dia menos dia, seria lembrada. Tanto quanto sua poesia, a faceta voltada a ideias revolucionárias de Khlébnikov era bastante imaginária – o motivo de ter sido tão rechaçado por Stálin, que não admitia posicionamentos contrários aos seus. Como diz Barthes, quando analisa a “escrita stalinista”, em O grau zero da escritura, ela quer dar “o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura imediata das condenações: o conteúdo objetivo da palavra ‘desviacionista’ é de ordem penal. Se dois ‘desviacionistas’ se reúnem, passam a ser ‘fraccionistas’, o que não corresponde a uma falta objetivamente diferente, mas a um agravamento da penalidade”. Uma escrita autoritária como a de Stálin “tem como missão fazer coincidir fraudulentamente a origem do fato e a sua manifestação mais longínqua, dando à justificação do ato a caução de sua realidade”. Tal escrita, lembra Barthes, é “própria a todos os regimes autoritários; é o que poderia se chamar de escrita policial: conhece-se, por exemplo, o conteúdo eternamente repressivo da palavra ‘Ordem’”. Por isso, os stalinistas rechaçam qualquer opinião discordante – e por isso combatem tanto os poetas, instituindo uma vigilância policial (o que veremos mais em outro artigo desta semana).
O que fica não é o discurso stalinista, e sim a obra de quem ele perseguiu, no caso a de Khlébnikov. Em 1928, saiu uma edição da obra do poeta na Rússia, com cinco volumes, que seria completada por inéditos em 1940. No Brasil, vale a pena conferir as obras Ka (com tradução de Aurora Fornoni Bernardini) e Poesia russa moderna (em que há ótimas traduções do russo para o português pelas mãos de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman). Abaixo, uma pequena antologia dos poemas de Khlébnikov:

O GRILO

Aleteando com a ourografia
Das veias finíssimas
O grilo
Enche o grill do ventre-silo
Com muitas gramas e talos de ribeira.
– Pin, pin, pin! – taramela o zinziber.
Oh, cisnencanto!
Oh, ilumínios!

(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

*

Tempos-juncos
Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
Santos, juntos.

(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

*

Bobeóbi cantar de lábios,
Lheeómi cantar de olhos,
Cieeo cantar de cílios,
Stioeei cantar do rosto
Gri-gsi-gseo o grilhão cantante.
Assim no bastidor dessas correspondências
Transespaço vivia o semblante.

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A água é espelho móvel,
Estrelas – redes; nós – os peixes;
Visões da treva – os deuses.

(Tradução de Augusto de Campos)

*
Uma vez mais, uma vez mais
Sou pra você
Uma estrela.
Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.

(Tradução de Augusto de Campos)

*

ENCANTAÇÃO PELO RISO

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Neste dia de ursos cerúleos
a correr sobre dias tranquilos
transvejo para além da água azul
o acordar na taça das pupilas.

Na colher de prata de olhos latos
vejo a procelária em mar sonoro
e ao largo vai a rússia dos pássaros
transvoando entrecílios ignotos.

Marventoso em celamor soçobra
a vela de alguém na azul esfera,
e eis que o desespero tudo engolfa
trovão e porvir de primavera.

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercancia.

(Tradução de Augusto de Campos)

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