1–06–2009
por Guilherme Scalzilli * – A discussão sobre políticas públicas para favelas sempre mergulha num labirinto retórico intransponível: deve-se privilegiar a segurança ou a igualdade social, os direitos humanos ou a legalidade? Semelhante paradoxo ressurgiu no episódio dos muros que a gestão Sérgio Cabral está construindo na zona sul carioca. A controversa barreira física contribui para a propagada defesa do patrimônio ecológico, mas esse benefício específico justificaria seus custos sócio-culturais?
O embaraço é inevitável porque, se a opção repressiva fracassou, a questão legal jamais pode ser negligenciada. A tolerância perante práticas delituosas das populações locais (inclusive o silêncio cúmplice) confere pretextos para as atrocidades do crime organizado, que culminam em brutalidade policial, mais isolamento e abandono. E a expansão territorial das ocupações irregulares precisa de limites rígidos, para preservar não apenas florestas, mas também o espaço público e a propriedade privada.
Acontece que não há saída intermediária para o problema. A única alternativa permanente, constitucional e democrática, passa pelo estabelecimento do Estado de Direito em todos os seus alicerces institucionais. Isso envolve cidadania e prerrogativas individuais, mas também responsabilidade, fiscalização e tutela judicial – em sociedades minimamente organizadas, tais conceitos são complementares, não antagônicos.
Trata-se da instalação maciça e simultânea de melhorias urbanas em regiões carentes, quebrando o círculo vicioso que as enterra na violência (o crime supre a ausência do Estado, que não quer ou não consegue vencer a resistência do primeiro). Essa obra gigantesca de reurbanização envolveria desapropriações, abertura de ruas e avenidas, saneamento básico, construção de postos de saúde, subprefeituras, delegacias, creches e escolas, centros culturais, praças e, principalmente, condomínios residenciais.
A proposta seria apresentada, com cronograma, em campanha eleitoral. A imprescindível legitimidade popular também viria de discussões com OAB, Judiciário, associações de moradores, entidades religiosas e ONGs, acompanhadas de uma campanha ostensiva de conscientização dos habitantes das regiões afetadas. Comissões suprapartidárias, heterogêneas e abrangentes supervisionariam obras, contratos e prazos.
A enormidade financeira da empreitada seria garantida por: a) investimentos estatais; b) organismos internacionais; c) participações da iniciativa privada; d) acréscimos tributários, em caráter provisório; e) aportes de empresas prestadoras de serviços como iluminação, gás, telefonia e transportes, em troca de permutas e concessões temporárias; f) doações.
As ações precisariam ser acompanhadas por forças de segurança que impedissem sabotagens, roubos e retaliações dos exércitos criminosos. Em algumas localidades, talvez fosse necessário empreender operações preventivas de conquista territorial. Não haveria como evitar o engajamento das Forças Armadas, inserindo-as numa divisão sensata de tarefas com a PM e esquadrões especiais.
Claro que restariam muitos desdobramentos estratégicos, logísticos e humanos a observar numa revolução dessa envergadura. Parece impossível, mas não é – e nunca foi, quando existiu vontade política e mobilização popular suficientes. Há inúmeros exemplos mundiais, desde a reurbanização de Paris pelo barão Haussmann, na segunda metade do século XIX, até a reconstrução da Europa no pós-guerra. O próprio Rio de Janeiro foi redesenhado, no início do século passado, durante a gestão Pereira Passos.
Mas tamanha evolução escapa às limitadas pretensões das autoridades públicas. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo federal prevê melhorias em favelas de várias cidades do país, com intervenções urbanísticas que essas regiões jamais conheceram. Porém, ainda que a iniciativa seja alvissareira, ela já nasce tímida, localizada, restrita a paliativos emergenciais que não saneiam as verdadeiras tragédias cotidianas das populações.
Suponhamos que as ações do PAC sejam bem-sucedidas. A criminalidade continuará suprindo lacunas, pelo menos nas imensas áreas não contempladas, envolvendo também os habitantes das vizinhanças. A previsível afluência de moradores atraídos pelas benfeitorias agravará a clandestinidade e a proliferação de habitações precárias (que o programa de investimentos já negligencia). Os poucos serviços públicos novos serão sobrecarregados, beirando o sucateamento em médio prazo. E todos os ridículos muros construídos ruirão ao sabor das necessidades momentâneas.
O fato incontornável é que a tal solução definitiva não interessa aos envolvidos. Lideranças políticas e religiosas locais locupletam-se do desespero de seus seguidores, que ainda sustentam um rentável comércio informal, além dos congêneres propriamente criminosos. As comunidades temem desapropriações e violências, pressionando entidades assistenciais e governantes a evitarem medidas drásticas. As autoridades, sabedoras das polícias corruptas e facínoras que mantêm, tremem ante a possibilidade de uma operação extensiva culminar em chacina irrefreável. E o restante da população (o chamado “asfalto”), por insensibilidade, preconceito ou ganância, mostra-se pouco afeito a sacrifícios que aprimorem a vivência alheia.
Resultados inevitáveis da omissão generalizada, o meio-termo, o improviso e a simplificação apenas edulcoram as fissuras estruturais dessa ruína social que sabemos lamentar, mas não estamos dispostos a reconstruir definitivamente. Há melhor exemplo do tão propalado “jeitinho brasileiro”?
* Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela, 2006), entre outros. Colabora regularmente com a revista Caros Amigos e a página do Le Monde Diplomatique Brasil. Blog: guilhermescalzilli.blogspot.com.
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