22 de fev. de 2012

Quais os fundamentos dessa lógica que considera mais importante salvar o mercado que vidas humanas?



* Frei Betto

O melhor Papai Noel do mundo mereceu 523 instituições financeiras europeias quatro dias antes do Natal: 489 bilhões de euros (o equivalente a R$ 1,23 trilhão), emprestados pelo Banco Central Europeu (BCE) a juros de 1% ao ano!    


Curiosa a lógica que rege o sistema capitalista: nunca há recursos para salvar vidas, erradicar a fome, reduzir a degradação ambiental, produzir medicamentos e distribuí-los gratuitamente. Em se tratando da saúde dos bancos, o dinheiro aparece num passe de mágica!    

Há, contudo, um aspecto preocupante em tamanha generosidade: se tantas instituições financeiras entraram na fila do bolsa-BCE, é sinal de que não andam bem das pernas…    
Quais os fundamentos dessa lógica que considera mais importante salvar o mercado que vidas humanas? Um deles é este mito de nossa cultura: o sacrifício de Isaac por Abraão (Gênesis 22, 1-19). 
   
No relato bíblico, Abraão deve provar a sua fé sacrificando a Javé seu único filho, Isaac. No exato momento em que, no alto da montanha, prepara a faca para matar o filho, o anjo intervém e impede Abraão de consumar o ato. A prova de fé fora dada pela disposição de matar. Em recompensa, Javé cobre Abraão de bênçãos e multiplica-lhe a descendência como as estrelas do céu e as areias do mar.   
 
Essa leitura, pela ótica do poder, aponta a morte como caminho para a vida. Toda grande causa – como a fé em Javé – exige pequenos sacrifícios que acentuem a magnitude dos ideais abraçados. Assim, a morte provocada, fruto do desinteresse do mercado por vidas humanas, passa a integrar a lógica do poder, como o sacrifício “necessário” do filho Isaac pelo pai Abraão, em obediência à vontade soberana de Deus.     

Abraão era o intermediário entre o filho e Deus, assim como o FMI e o BCE fazem a ponte entre os bancos e os ideais de prosperidade capitalista dos governos europeus – que, para escapar da crise, devem promover sacrifícios.       

Essa mesma lógica informa o inconsciente do patrão que sonega o salário de seus empregados sob pretexto de capitalizar e multiplicar a prosperidade geral, e criar mais empregos. Também leva o governo a acusar as greves de responsáveis pelo caos econômico, mesmo sabendo que resultam dos baixos salários pagos aos que tanto trabalham sem ao menos a recompensa de uma vida digna.  

O deus da razão do mercado merece, como prova de fidelidade, o sacrifício de todo um povo. Todos os ideais estão prenhes de promessas de vida: a prosperidade dos bancos credores, a capitalização das empresas ou o ajuste fiscal do governo. Salva-se o abstrato em detrimento do concreto, a vida humana.   

O espantoso dessa lógica é admitir, como mediação, a morte anunciada. Mata-se cruelmente através do corte de subsídios a programas sociais; da desregulamentação das relações trabalhistas; do incentivo ao desemprego; dos ajustes fiscais draconianos; da recusa de conceder aos aposentados a qualidade de uma velhice decente. A lógica cotidiana do assassinato é sutil e esmerada.  

Aqueles que têm admitem como natural a despossessão dos que não têm. Qualquer ameaça à lógica cumulativa do sistema é uma ofensa ao deus da liberdade ocidental ou da livre iniciativa. Exige-se o sacrifício como prova de fidelidade. Não importa que Isaac seja filho único. Abraão deve provar sua fidelidade a Javé. E não há maior prova do que a disposição de matar a vida mais querida.   

A lógica da vida encara o relato bíblico pelos olhos de Isaac. Este não sabia que seria assassinado, tanto que indagou ao pai onde se encontrava o cordeiro destinado ao sacrifício. Abraão cumpriu todas as condições para matar o filho. Subjugou-o, amarrou-o, colocou-o sobre a lenha preparada para a fogueira e empunhou a faca para degolá-lo.    

No entanto, inspirado pelo anjo, Abraão recuou. Não aceitou a lógica da morte. Subverteu o preceito que obrigava os pais a sacrificarem seus primogênitos. Rejeitou as razões do poder. À lei que exigia a morte, Abraão respondeu com a vida e pôs em risco a sua própria, o que o forçou a mudar de território.    

Se não mudarmos de território – sobretudo no modo de encarar a realidade –, como Abraão, continuaremos a prestar culto e adoração a Mamom. Continuaremos empenhados em salvar o capital, não vidas, e muito menos a saúde do planeta.  

Texto publicado no Brasil de Fato.
 
* Frei Betto é escritor, militante de movimentos pastorais e sociais, esteve preso na ditadura militar em 1964, assessorou vários governos socialistas e coordenou a Mobilização Social do programa Fome Zero.

Um comentário:

  1. Frei Beto, que esteve aqui em Natal no ano passado, morreria de tristeza se soubesse o que anda acontecendo por aqui. Ontem tive uma experiencia terrivel com o Secretário municipal de educação de Natal (o tb vice-presidente do PV no RN) o senhor Walter Fonseca. Não me recordo de ter conhecido alguém tão mal educado, triste, frio e desumano. Se ele foi, como sempre conta, uma pessoa humilde, com certeza se perdeu pelo caminho do poder. Talvez pense ser eterno e inatingível para sempre. Postei uma carta no meu Blog que explica o motivo de tudo isso. Um abraço.

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