José Mindlin *
Não é exagero: este homem foi uma biblioteca. Mas não apenas por ser um leitor voraz, capaz de ler 100 livros por ano, e sim porque sua biblioteca de livros "ciumentos" é sua grande obra. A ela devotou a vida. E agora a entrega ao mundo. Foi secretário de cultura, combatendo o regime militar dentro do governo. Acreditou numa tecnologia brasileira, e na empresa que fundou, num tempo em que mal havia patrocínio cultural, viabilizou obras artísticas fundamentais. Mais do que um homem notável, José Mindlin foi uma figura encantadora. Na despedida, nos vem com essa: ” Não entendo por que todos que vêm aqui me visitar são tão simpáticos…”
Quando surgiu a paixão pelos livros?
Comecei a frequentar sebos e a comprar livros aos 13 anos, em 1927. A biblioteca que está aí levou 80 anos para ser constituída. Foi um interesse central de vida, tanto de minha mulher quanto meu. Minha vida mudou quando comecei a frequentar os sebos. Encontrei uma edição portuguesa do Discurso sobre a História Universal, de Jacques Bossuet, impresso em Coimbra, em 1740. E fiquei fascinado pela antiguidade. Depois aprendi que a idade do livro não é muito importante. Há muito livro moderno mais importante do que livros do século 16. Mas esse episódio detonou meu interesse pelos livros raros. Na mesma ocasião, recebi de uma tia uma edição de História do Brasil, do Frei Vicente do Salvador, cronista do século 17. Li com muito interesse pelos assuntos brasileiros. Já era interessado por leitura, porque eu e meu irmão mais velho, o arquiteto Henrique Mindlin, éramos muito amigos. O que ele leu aos 16 anos li aos 12. Tive uma certa precocidade, que, com o tempo, evidentemente, desapareceu.
Sua casa era uma casa de leitores?
Era. Papai e mamãe tinham uma biblioteca com os bons autores russos, ingleses e alguma coisa de brasileiros também. Eles liam, meus irmãos liam e eu lia também. Assim como os meus filhos, que são todos ótimos leitores. Passaram isso para os netos, e agora estamos com bisnetos de 6 anos que também estão lendo, formando sua biblioteca.
Como começou sua carreira profissional?
Comecei a trabalhar como redator do Estado de S.Paulo. Para mim, foi uma experiência insubstituível.
Fiquei conhecendo os bastidores da sociedade, da política. Aprendi a escrever com simplicidade, correção, clareza. Até hoje, quando tenho que fazer uma palestra, falo com a maior naturalidade. Entrei no jornal em maio e, em setembro, completei 16 anos. Fui o redator mais novo do Estado. Passei quatro anos, de 1930 a 1934. E continuei numa relação com o jornal pelo resto da vida.
Mas a sua formação é de advogado, não?
Sim. Entrei na faculdade em 1932 porque achei que o Jornalismo tinha me proporcionado grandes vantagens. E resolvi seguir Direito. Naquele tempo as aulas aconteciam naqueles salões grandes. Enquanto os professores liam as suas preleções, eu, sentado no fundo da sala, lia a minha literatura, os grandes autores. Eles levavam 50 minutos lendo o material que eu, em casa, lia em 15. Costumo brincar que aprendi Direito em casa; e Literatura, na faculdade.
No meio desse caminho, em 1932, houve uma revolução na qual você tomou parte. Como foi?
Não tomei parte militar. Meu irmão entrou em delegacias técnicas, que cuidavam de abastecimento.
Eu fui parar numa dessas em Itapetininga com a responsabilidade de controlar o uso de gasolina.
Havia um problema severo de racionamento. Achei que tinha conseguido controlar o uso da gasolina, mas quando voltei para São Paulo não tive a menor dificuldade de achar um táxi para me levar da estação de trem. São os jeitos brasileiros que estão aí.
O senhor era jovem quando o mundo discutia sobre nazismo e comunismo. Como foi esse período?
Advoguei de 1937 a 1950. Foi uma boa experiência. Aprendi a conviver com contrários, o que é muito importante para a vida. Posso me considerar uma pessoa tolerante, que só tem intolerância para a intolerância. Ou para a desonestidade. É preciso conviver e respeitar opiniões diferentes. Tinha um colega na faculdade que era integralista. Consegui tirá-lo do Partido Integralista só com conversas de amizade. Mas eu não tinha deixado de ser amigo dele por ele ser integralista, pois havia muitos integralistas bem-intencionados. Os que eram favoráveis ao fascismo e ao nazismo eram outra coisa. Com fanáticos não adianta discutir.
Por que abandonou a advocacia?
Eu era advogado do grupo que pretendia fazer a Metal Leve. Houve problemas na constituição da empresa, que ajudei a resolver, e acabei tornando-me sócio. Mas não dava para advogar e estar na empresa - ainda mais em se tratando de uma empresa pequena, que exigia trabalho direto. Começamos no mercado de reposição de peças. Durante os primeiros 20 anos, só tínhamos um pró-labore. Todo o lucro era reinvestido. Durante muitos anos, lutamos por essa capacitação tecnológica.
Como a empresa tornou-se tão grande?
Nós éramos um grupo de seis com opiniões bastante diferentes. A indústria automobilística demandava um conteúdo nacional, era muito exigente em matéria de qualidade e precisão. Quando chegou o momento certo, depois de anos de reinvestimento, tínhamos condições de atender à indústria. Nos preparamos para isso porque acreditávamos na nossa capacidade, como brasileiros, de desenvolver tecnologia própria. Foi um trabalho interessante. Nosso grupo tinha uma característica: gostávamos de coisas difíceis. Coisa fácil, qualquer um faz. A empresa cresceu muito, mas, antes disso, fiz muitas faturas, pintei endereço de clientes em caixotes etc.
A Metal Leve notabilizou-se por patrocinar espetáculos e artistas numa época em que não havia essa cultura no País. Qual a sua participação nisso?
Não tínhamos, propriamente, uma verba para isso. Mas os diretores me delegaram a função de atender os artistas. Fizemos muito apoio cultural. Quando a empresa completou 25 anos, disse aos outros diretores: "Vamos fazer uma comemoração menos efêmera". E fizemos uma edição fac-similar da Revista de Antropofagia, que era um documento de extrema importância, mas que ninguém tinha. A partir daí, passamos a fazer várias edições de obras completas.
Como foi tornar-se secretário de governo em São Paulo durante o governo militar?
Quando assumi a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, as pessoas que não me conheciam do meio científico diziam: "O que é que um advogado entende de ciência e tecnologia?" E as do campo cultural reproduziam outro preconceito: "O que um empresário entende de cultura?" Mas isso se dissipou em pouco tempo, porque sempre fui um homem de diálogo. Eu tinha contato, trânsito bastante livre com políticos e mesmo militares, menos com a parte mais radical. Eu criticava ideias, não pessoas. E nós, na Metal Leve, tínhamos a independência econômica que sempre procuramos ter. Nunca pedi favores. Na empresa, havia gente que apoiava o Maluf. Mas não entrávamos na política. Não dávamos contribuição para ninguém. Com isso, também se evitavam problemas internos.
O convite veio do governador Paulo Egydio?
Sim, e eu, que era notadamente contra o regime militar, resolvi apresentar a questão para a minha família, que vetou imediatamente qualquer possibilidade. Mas um grupo de amigos me surpreendeu:
"Se quem quer a abertura do regime recusa o cargo, ele vai ser ocupado por alguém que não quer. É pior". E assim decidi assumir o cargo. Pude resolver, de saída, um problema que amargurava a classe científica: criamos a carreira de pesquisador. Compreendi que num cargo público, se você só está preocupado com o que faz e não pretende usar o cargo como degrau para uma carreira política, é possível realizar muitas coisas. No começo do governo, fomos a um jantar - o governador, a esposa, eu e minha mulher. E eis que chega um violinista, dirigindo-se ao Paulo Egydio: "Governador, sou seu funcionário, sou segundo violino da orquestra". E ele respondeu: "Então fale com o meu secretário".
Eu disse: "Amanhã, às dez horas, esteja na Secretaria". Verifiquei que praticamente todos os músicos tinham que ter outros empregos para poder viver. E não tinham tempo de ensaiar. Procurei o governador e propus triplicar os vencimentos, com a condição de eles estarem de acordo em passar um ou dois meses morando no interior, criando núcleos de cultura musical. E isso foi feito. Começou a chover músicos de outros estados em São Paulo. Falo isso para mostrar que, se você aceita, assume a responsabilidade e não se conforma com o processo burocrático normal, dá para fazer muita coisa.
Wladimir Herzog foi assassinado durante sua gestão. Como o senhor reagiu?
Fui eu quem propôs o Vlado para diretor de jornalismo da TV Cultura. Não o conhecia, mas seu currículo era de longe o melhor. Telefonei para o Rui Nogueira Martins, presidente da Fundação Padre Anchieta, que disse: "Ele teve umas veleidades comunistas na mocidade, mas é coisa sem importância. Pode nomear". Depois marquei um encontro com Rui, e ele me disse que o Vlado estava mal orientado, que no dia da posse havia posto no ar um programa sobre Ho-Chi Minh. Ora, se o programa foi ao ar no dia da posse, é porque já estava pronto. Ele retrucou: "Não estou pedindo a demissão. Isso depende do grau de risco que o senhor esteja disposto a assumir". Passou-se um mês e fui a um seminário nos Estados Unidos. Paulo Egydio estava no interior. E Herzog foi preso. E aí aconteceu o que todo mundo sabe. Ele foi assassinado. Procurei o governador com uma carta de demissão em mãos. E ele disse: "Você está liberado, nosso acordo foi esse. Mas se sair agora, enfraquece a resistência. Se ficar, também não posso garantir nada. Amanhã podemos estar presos, ou na rua". Nesse meio tempo, houve o assassinato do Manuel Fiel Filho. Era inadmissível. Se eu saísse e viesse a abertura, ficaria com muita pena de ter saído. Mas, se ficasse e não viesse a abertura, ficaria com muito mais pena de ter ficado. Resolvi sair.
Voltando aos livros, como o senhor lê?
Sou capaz de ler 15 minutos, encosto o livro, trato de outra coisa, retomo. E, com isso, em meus melhores momentos, cheguei a ler uma média de dois, três livros por semana. Isso dá quase 100 livros por ano. Fiz isso durante décadas. Em 1938, me casei com Guita, uma companheira integral, parceira até no gosto por livros. Íamos completar 68 anos de casados quando ela morreu [em 2006]. Isso, para mim, foi um trauma terrível. Não há como se recuperar. Ela participou da formação da biblioteca e houve muitos casos em que eu hesitava em adquirir uma obra porque podia comprometer o orçamento, mas ela insistia. Um dia também meu tempo vai passar. Nós passamos, mas os livros ficam.
O senhor tem algum preferido?
Costumo dizer que os livros são muito ciumentos. De modo que eu não posso manifestar preferência porque assim vou criar problemas internos aqui na biblioteca. Certa vez, fizemos uma exposição no Museu Lasar Segall. Você não imagina a dificuldade que tivemos para escolher 100 obras e documentos… Tive muita reclamação. Tinha que dizer aos livros preteridos: "Na próxima exposição, você entra". Não falo em preferências, mas elas existem. Por exemplo, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Marcel Proust, mas sem excluir o mundo de outros autores.
Entre estes, o que há de precioso em sua biblioteca?
De Machado, o máximo que eu pude conseguir foram exemplares autografados. Mas de Guimarães Rosa, consegui muita coisa importante, como o original de Grande Sertão: Veredas que foi para a tipografia para a primeira edição. Tem um exemplar da terceira edição de Sagarana, a primeira publicada pela José Olympio. Temos também um exemplar que foi do Rosa, preparatório para a quarta edição. Nesse, há uma quantidade enorme de correções… Ele preparou a quarta edição dizendo que seria o texto definitivo. Mas quando saiu a quarta, com todas as correções da terceira edição, ele ainda resolveu preparar a quinta, outra vez com muitas correções manuscritas. E quando saiu a quinta edição, José Olympio disse ao Rosa que chega. A quinta acabou sendo a definitiva.
Como é essa história que os livros te procuram?
Ah, procuram sim. A gente procura os livros e os livros procuram a gente. Sou muito cético, mas houve obras, por exemplo, que deixei de comprar e depois me arrependi. E aí, tempos depois, me chegou às mãos novamente - não um outro exemplar, mas aquele que recusei anos antes… Como se explica isso? Quase tenho a tentação de dizer que é sobrenatural. Quanto aos arrependimentos, só me arrependo das obras que não comprei podendo comprar, porque, não podendo, não é caso de arrependimento… Lembro-me da primeira edição da Gramática, de Anchieta, datada de 1595. É uma raridade excepcional. Conhecem-se uns 10 ou 12 exemplares da obra. E um dia recebo um telegrama de Amsterdã encaminhado por um antiquário, offering the right of first refusal [oferecendo o direito da primeira recusa]. Mandei um de volta: Infelizmente… não posso recusar.
Como é o cotidiano de um bibliófilo como o senhor?
Eu sou muito procurado. Há quem me procure até para fazer doações de livros, na esperança de que aqui eles estejam bem guardados. Desde cedo travei amizade com antiquários do mundo inteiro. Ainda menino, escrevia para os principais antiquários europeus pedindo catálogos. Os catálogos contêm informações preciosas que me permitiram adquirir um conhecimento acerca dos livros raros que, sem isso, eu certamente não teria conseguido. Os antiquários me mandavam os catálogos, naturalmente, pensando que eu fosse um bibliófilo qualquer de um país exótico. Mas eu era apenas um mocinho que não podia comprar nada. Quando comecei a viajar e visitá-los, estabeleceu-se uma boa amizade.
Como surgiu a ideia de doar a parte mais importante de sua biblioteca, a Brasiliana?
Criamos um acervo que se tornou indivisível. Eu e Guita conversamos com os nossos filhos: "Se formos dividir esse conjunto em quatro, quando levarmos a breca, a coleção perderá todo o sentido". E eles entenderam perfeitamente. Fizemos a doação à USP, que está construindo um prédio para recebê-la.
A Brasiliana contém os livros com assuntos relativos ao Brasil, de autores brasileiros ou estrangeiros. É a parte mais importante da biblioteca. Deve ter entre 25 e 30 mil exemplares. Será uma ilha de estudos
brasileiros com a qual nenhuma outra universidade do Brasil pôde sonhar. Com isso, se assegura a continuidade da biblioteca, uma fonte de pesquisa e de estudo respeitável.
Rubem Alves costuma dizer que leitura não deve ser hábito; que hábito devemos ter de escovar os dentes, tomar banho. Leitura deve ser prazer. O senhor concorda?
Hábito ou gosto, o fato é que a leitura deve entrar na nossa vida. Quando eu ia levar as crianças para a escola, tinha que chegar às 7h10. Encostava o carro debaixo de uma árvore e lia até 8h45. Uma hora e meia de leitura diária. Naquele tempo não havia assaltos, ou telefone celular - que até hoje não uso. Em geral, gosto de ler um livro até o fim. Mas, se não me dá prazer, eu deixo. O livro não é só uma fonte de conhecimento. Você tem que gostar do que está lendo. O livro é, principalmente, uma fonte de prazer. E nisso Rubem Alves está certo.
O que o senhor está lendo hoje?
Há um problema complicado, que classifico de injustiça da sorte. Eu, um leitor inveterado, de repente fiquei com um problema de mácula na visão e não consigo mais ler. Então, tenho que ouvir ler. Não é a mesma coisa. O último que acabei de ouvir foi um do Alberto da Costa e Silva, Ficções da Memória. É, talvez, o melhor autor da Academia Brasileira de Letras. Antes, tinha lido um livro do Jean Claude Carriére: Fragilidade. Mostra que todos somos frágeis, somos de vidro, e um dia acabamos quebrando. De jornais, leio mais editoriais do que noticiário, de modo que eu não posso dizer que seja, hoje, uma pessoa bem informada.
Se um colecionador como o senhor não é bem informado, pobre de nós…
Na verdade, não me considero um colecionador. Sou fundamentalmente um leitor. Digo que as coleções se formam dentro da biblioteca. Começa-se com as edições Garnier do Machado de Assis. Depois, fica-se pensando: "Seria interessante ter a edição original". E quando se tem todas as edições originais, passa-se a dizer: "Mas seria tão bom ter um livro autografado…"
Como então defini-lo? Bibliófilo parece nome de doença, não é? Recorrendo ao dicionário, poderíamos até falar em bibliofilia, o que é ainda pior…
Nunca tinha pensado nessa perspectiva. De certo modo, tenho uma compulsão patológica por ler, comprar e juntar livros, mas é um tipo de patologia que faz sentir-se bem, ao invés de fazer sentir-se mal. E é uma coisa incurável, de modo que a gente tem que aceitar. Diante da necessidade de uma auto-definição, diria que sou um contador de histórias, um sujeito que gosta muito de papo. Ou que toma a sério as coisas que faz, mas não se toma a sério.
Não é exagero: este homem foi uma biblioteca. Mas não apenas por ser um leitor voraz, capaz de ler 100 livros por ano, e sim porque sua biblioteca de livros "ciumentos" é sua grande obra. A ela devotou a vida. E agora a entrega ao mundo. Foi secretário de cultura, combatendo o regime militar dentro do governo. Acreditou numa tecnologia brasileira, e na empresa que fundou, num tempo em que mal havia patrocínio cultural, viabilizou obras artísticas fundamentais. Mais do que um homem notável, José Mindlin foi uma figura encantadora. Na despedida, nos vem com essa: ” Não entendo por que todos que vêm aqui me visitar são tão simpáticos…”
Quando surgiu a paixão pelos livros?
Comecei a frequentar sebos e a comprar livros aos 13 anos, em 1927. A biblioteca que está aí levou 80 anos para ser constituída. Foi um interesse central de vida, tanto de minha mulher quanto meu. Minha vida mudou quando comecei a frequentar os sebos. Encontrei uma edição portuguesa do Discurso sobre a História Universal, de Jacques Bossuet, impresso em Coimbra, em 1740. E fiquei fascinado pela antiguidade. Depois aprendi que a idade do livro não é muito importante. Há muito livro moderno mais importante do que livros do século 16. Mas esse episódio detonou meu interesse pelos livros raros. Na mesma ocasião, recebi de uma tia uma edição de História do Brasil, do Frei Vicente do Salvador, cronista do século 17. Li com muito interesse pelos assuntos brasileiros. Já era interessado por leitura, porque eu e meu irmão mais velho, o arquiteto Henrique Mindlin, éramos muito amigos. O que ele leu aos 16 anos li aos 12. Tive uma certa precocidade, que, com o tempo, evidentemente, desapareceu.
Sua casa era uma casa de leitores?
Era. Papai e mamãe tinham uma biblioteca com os bons autores russos, ingleses e alguma coisa de brasileiros também. Eles liam, meus irmãos liam e eu lia também. Assim como os meus filhos, que são todos ótimos leitores. Passaram isso para os netos, e agora estamos com bisnetos de 6 anos que também estão lendo, formando sua biblioteca.
Como começou sua carreira profissional?
Comecei a trabalhar como redator do Estado de S.Paulo. Para mim, foi uma experiência insubstituível.
Fiquei conhecendo os bastidores da sociedade, da política. Aprendi a escrever com simplicidade, correção, clareza. Até hoje, quando tenho que fazer uma palestra, falo com a maior naturalidade. Entrei no jornal em maio e, em setembro, completei 16 anos. Fui o redator mais novo do Estado. Passei quatro anos, de 1930 a 1934. E continuei numa relação com o jornal pelo resto da vida.
Mas a sua formação é de advogado, não?
Sim. Entrei na faculdade em 1932 porque achei que o Jornalismo tinha me proporcionado grandes vantagens. E resolvi seguir Direito. Naquele tempo as aulas aconteciam naqueles salões grandes. Enquanto os professores liam as suas preleções, eu, sentado no fundo da sala, lia a minha literatura, os grandes autores. Eles levavam 50 minutos lendo o material que eu, em casa, lia em 15. Costumo brincar que aprendi Direito em casa; e Literatura, na faculdade.
No meio desse caminho, em 1932, houve uma revolução na qual você tomou parte. Como foi?
Não tomei parte militar. Meu irmão entrou em delegacias técnicas, que cuidavam de abastecimento.
Eu fui parar numa dessas em Itapetininga com a responsabilidade de controlar o uso de gasolina.
Havia um problema severo de racionamento. Achei que tinha conseguido controlar o uso da gasolina, mas quando voltei para São Paulo não tive a menor dificuldade de achar um táxi para me levar da estação de trem. São os jeitos brasileiros que estão aí.
O senhor era jovem quando o mundo discutia sobre nazismo e comunismo. Como foi esse período?
Advoguei de 1937 a 1950. Foi uma boa experiência. Aprendi a conviver com contrários, o que é muito importante para a vida. Posso me considerar uma pessoa tolerante, que só tem intolerância para a intolerância. Ou para a desonestidade. É preciso conviver e respeitar opiniões diferentes. Tinha um colega na faculdade que era integralista. Consegui tirá-lo do Partido Integralista só com conversas de amizade. Mas eu não tinha deixado de ser amigo dele por ele ser integralista, pois havia muitos integralistas bem-intencionados. Os que eram favoráveis ao fascismo e ao nazismo eram outra coisa. Com fanáticos não adianta discutir.
Por que abandonou a advocacia?
Eu era advogado do grupo que pretendia fazer a Metal Leve. Houve problemas na constituição da empresa, que ajudei a resolver, e acabei tornando-me sócio. Mas não dava para advogar e estar na empresa - ainda mais em se tratando de uma empresa pequena, que exigia trabalho direto. Começamos no mercado de reposição de peças. Durante os primeiros 20 anos, só tínhamos um pró-labore. Todo o lucro era reinvestido. Durante muitos anos, lutamos por essa capacitação tecnológica.
Como a empresa tornou-se tão grande?
Nós éramos um grupo de seis com opiniões bastante diferentes. A indústria automobilística demandava um conteúdo nacional, era muito exigente em matéria de qualidade e precisão. Quando chegou o momento certo, depois de anos de reinvestimento, tínhamos condições de atender à indústria. Nos preparamos para isso porque acreditávamos na nossa capacidade, como brasileiros, de desenvolver tecnologia própria. Foi um trabalho interessante. Nosso grupo tinha uma característica: gostávamos de coisas difíceis. Coisa fácil, qualquer um faz. A empresa cresceu muito, mas, antes disso, fiz muitas faturas, pintei endereço de clientes em caixotes etc.
A Metal Leve notabilizou-se por patrocinar espetáculos e artistas numa época em que não havia essa cultura no País. Qual a sua participação nisso?
Não tínhamos, propriamente, uma verba para isso. Mas os diretores me delegaram a função de atender os artistas. Fizemos muito apoio cultural. Quando a empresa completou 25 anos, disse aos outros diretores: "Vamos fazer uma comemoração menos efêmera". E fizemos uma edição fac-similar da Revista de Antropofagia, que era um documento de extrema importância, mas que ninguém tinha. A partir daí, passamos a fazer várias edições de obras completas.
Como foi tornar-se secretário de governo em São Paulo durante o governo militar?
Quando assumi a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, as pessoas que não me conheciam do meio científico diziam: "O que é que um advogado entende de ciência e tecnologia?" E as do campo cultural reproduziam outro preconceito: "O que um empresário entende de cultura?" Mas isso se dissipou em pouco tempo, porque sempre fui um homem de diálogo. Eu tinha contato, trânsito bastante livre com políticos e mesmo militares, menos com a parte mais radical. Eu criticava ideias, não pessoas. E nós, na Metal Leve, tínhamos a independência econômica que sempre procuramos ter. Nunca pedi favores. Na empresa, havia gente que apoiava o Maluf. Mas não entrávamos na política. Não dávamos contribuição para ninguém. Com isso, também se evitavam problemas internos.
O convite veio do governador Paulo Egydio?
Sim, e eu, que era notadamente contra o regime militar, resolvi apresentar a questão para a minha família, que vetou imediatamente qualquer possibilidade. Mas um grupo de amigos me surpreendeu:
"Se quem quer a abertura do regime recusa o cargo, ele vai ser ocupado por alguém que não quer. É pior". E assim decidi assumir o cargo. Pude resolver, de saída, um problema que amargurava a classe científica: criamos a carreira de pesquisador. Compreendi que num cargo público, se você só está preocupado com o que faz e não pretende usar o cargo como degrau para uma carreira política, é possível realizar muitas coisas. No começo do governo, fomos a um jantar - o governador, a esposa, eu e minha mulher. E eis que chega um violinista, dirigindo-se ao Paulo Egydio: "Governador, sou seu funcionário, sou segundo violino da orquestra". E ele respondeu: "Então fale com o meu secretário".
Eu disse: "Amanhã, às dez horas, esteja na Secretaria". Verifiquei que praticamente todos os músicos tinham que ter outros empregos para poder viver. E não tinham tempo de ensaiar. Procurei o governador e propus triplicar os vencimentos, com a condição de eles estarem de acordo em passar um ou dois meses morando no interior, criando núcleos de cultura musical. E isso foi feito. Começou a chover músicos de outros estados em São Paulo. Falo isso para mostrar que, se você aceita, assume a responsabilidade e não se conforma com o processo burocrático normal, dá para fazer muita coisa.
Wladimir Herzog foi assassinado durante sua gestão. Como o senhor reagiu?
Fui eu quem propôs o Vlado para diretor de jornalismo da TV Cultura. Não o conhecia, mas seu currículo era de longe o melhor. Telefonei para o Rui Nogueira Martins, presidente da Fundação Padre Anchieta, que disse: "Ele teve umas veleidades comunistas na mocidade, mas é coisa sem importância. Pode nomear". Depois marquei um encontro com Rui, e ele me disse que o Vlado estava mal orientado, que no dia da posse havia posto no ar um programa sobre Ho-Chi Minh. Ora, se o programa foi ao ar no dia da posse, é porque já estava pronto. Ele retrucou: "Não estou pedindo a demissão. Isso depende do grau de risco que o senhor esteja disposto a assumir". Passou-se um mês e fui a um seminário nos Estados Unidos. Paulo Egydio estava no interior. E Herzog foi preso. E aí aconteceu o que todo mundo sabe. Ele foi assassinado. Procurei o governador com uma carta de demissão em mãos. E ele disse: "Você está liberado, nosso acordo foi esse. Mas se sair agora, enfraquece a resistência. Se ficar, também não posso garantir nada. Amanhã podemos estar presos, ou na rua". Nesse meio tempo, houve o assassinato do Manuel Fiel Filho. Era inadmissível. Se eu saísse e viesse a abertura, ficaria com muita pena de ter saído. Mas, se ficasse e não viesse a abertura, ficaria com muito mais pena de ter ficado. Resolvi sair.
Voltando aos livros, como o senhor lê?
Sou capaz de ler 15 minutos, encosto o livro, trato de outra coisa, retomo. E, com isso, em meus melhores momentos, cheguei a ler uma média de dois, três livros por semana. Isso dá quase 100 livros por ano. Fiz isso durante décadas. Em 1938, me casei com Guita, uma companheira integral, parceira até no gosto por livros. Íamos completar 68 anos de casados quando ela morreu [em 2006]. Isso, para mim, foi um trauma terrível. Não há como se recuperar. Ela participou da formação da biblioteca e houve muitos casos em que eu hesitava em adquirir uma obra porque podia comprometer o orçamento, mas ela insistia. Um dia também meu tempo vai passar. Nós passamos, mas os livros ficam.
O senhor tem algum preferido?
Costumo dizer que os livros são muito ciumentos. De modo que eu não posso manifestar preferência porque assim vou criar problemas internos aqui na biblioteca. Certa vez, fizemos uma exposição no Museu Lasar Segall. Você não imagina a dificuldade que tivemos para escolher 100 obras e documentos… Tive muita reclamação. Tinha que dizer aos livros preteridos: "Na próxima exposição, você entra". Não falo em preferências, mas elas existem. Por exemplo, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Marcel Proust, mas sem excluir o mundo de outros autores.
Entre estes, o que há de precioso em sua biblioteca?
De Machado, o máximo que eu pude conseguir foram exemplares autografados. Mas de Guimarães Rosa, consegui muita coisa importante, como o original de Grande Sertão: Veredas que foi para a tipografia para a primeira edição. Tem um exemplar da terceira edição de Sagarana, a primeira publicada pela José Olympio. Temos também um exemplar que foi do Rosa, preparatório para a quarta edição. Nesse, há uma quantidade enorme de correções… Ele preparou a quarta edição dizendo que seria o texto definitivo. Mas quando saiu a quarta, com todas as correções da terceira edição, ele ainda resolveu preparar a quinta, outra vez com muitas correções manuscritas. E quando saiu a quinta edição, José Olympio disse ao Rosa que chega. A quinta acabou sendo a definitiva.
Como é essa história que os livros te procuram?
Ah, procuram sim. A gente procura os livros e os livros procuram a gente. Sou muito cético, mas houve obras, por exemplo, que deixei de comprar e depois me arrependi. E aí, tempos depois, me chegou às mãos novamente - não um outro exemplar, mas aquele que recusei anos antes… Como se explica isso? Quase tenho a tentação de dizer que é sobrenatural. Quanto aos arrependimentos, só me arrependo das obras que não comprei podendo comprar, porque, não podendo, não é caso de arrependimento… Lembro-me da primeira edição da Gramática, de Anchieta, datada de 1595. É uma raridade excepcional. Conhecem-se uns 10 ou 12 exemplares da obra. E um dia recebo um telegrama de Amsterdã encaminhado por um antiquário, offering the right of first refusal [oferecendo o direito da primeira recusa]. Mandei um de volta: Infelizmente… não posso recusar.
Como é o cotidiano de um bibliófilo como o senhor?
Eu sou muito procurado. Há quem me procure até para fazer doações de livros, na esperança de que aqui eles estejam bem guardados. Desde cedo travei amizade com antiquários do mundo inteiro. Ainda menino, escrevia para os principais antiquários europeus pedindo catálogos. Os catálogos contêm informações preciosas que me permitiram adquirir um conhecimento acerca dos livros raros que, sem isso, eu certamente não teria conseguido. Os antiquários me mandavam os catálogos, naturalmente, pensando que eu fosse um bibliófilo qualquer de um país exótico. Mas eu era apenas um mocinho que não podia comprar nada. Quando comecei a viajar e visitá-los, estabeleceu-se uma boa amizade.
Como surgiu a ideia de doar a parte mais importante de sua biblioteca, a Brasiliana?
Criamos um acervo que se tornou indivisível. Eu e Guita conversamos com os nossos filhos: "Se formos dividir esse conjunto em quatro, quando levarmos a breca, a coleção perderá todo o sentido". E eles entenderam perfeitamente. Fizemos a doação à USP, que está construindo um prédio para recebê-la.
A Brasiliana contém os livros com assuntos relativos ao Brasil, de autores brasileiros ou estrangeiros. É a parte mais importante da biblioteca. Deve ter entre 25 e 30 mil exemplares. Será uma ilha de estudos
brasileiros com a qual nenhuma outra universidade do Brasil pôde sonhar. Com isso, se assegura a continuidade da biblioteca, uma fonte de pesquisa e de estudo respeitável.
Rubem Alves costuma dizer que leitura não deve ser hábito; que hábito devemos ter de escovar os dentes, tomar banho. Leitura deve ser prazer. O senhor concorda?
Hábito ou gosto, o fato é que a leitura deve entrar na nossa vida. Quando eu ia levar as crianças para a escola, tinha que chegar às 7h10. Encostava o carro debaixo de uma árvore e lia até 8h45. Uma hora e meia de leitura diária. Naquele tempo não havia assaltos, ou telefone celular - que até hoje não uso. Em geral, gosto de ler um livro até o fim. Mas, se não me dá prazer, eu deixo. O livro não é só uma fonte de conhecimento. Você tem que gostar do que está lendo. O livro é, principalmente, uma fonte de prazer. E nisso Rubem Alves está certo.
O que o senhor está lendo hoje?
Há um problema complicado, que classifico de injustiça da sorte. Eu, um leitor inveterado, de repente fiquei com um problema de mácula na visão e não consigo mais ler. Então, tenho que ouvir ler. Não é a mesma coisa. O último que acabei de ouvir foi um do Alberto da Costa e Silva, Ficções da Memória. É, talvez, o melhor autor da Academia Brasileira de Letras. Antes, tinha lido um livro do Jean Claude Carriére: Fragilidade. Mostra que todos somos frágeis, somos de vidro, e um dia acabamos quebrando. De jornais, leio mais editoriais do que noticiário, de modo que eu não posso dizer que seja, hoje, uma pessoa bem informada.
Se um colecionador como o senhor não é bem informado, pobre de nós…
Na verdade, não me considero um colecionador. Sou fundamentalmente um leitor. Digo que as coleções se formam dentro da biblioteca. Começa-se com as edições Garnier do Machado de Assis. Depois, fica-se pensando: "Seria interessante ter a edição original". E quando se tem todas as edições originais, passa-se a dizer: "Mas seria tão bom ter um livro autografado…"
Como então defini-lo? Bibliófilo parece nome de doença, não é? Recorrendo ao dicionário, poderíamos até falar em bibliofilia, o que é ainda pior…
Nunca tinha pensado nessa perspectiva. De certo modo, tenho uma compulsão patológica por ler, comprar e juntar livros, mas é um tipo de patologia que faz sentir-se bem, ao invés de fazer sentir-se mal. E é uma coisa incurável, de modo que a gente tem que aceitar. Diante da necessidade de uma auto-definição, diria que sou um contador de histórias, um sujeito que gosta muito de papo. Ou que toma a sério as coisas que faz, mas não se toma a sério.
José Ephim Mindlin de São Paulo (8 de setembro de 1914, a 28 de fevereiro de 2010), foi advogado, empresário e bibliófilo brasileiro.
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